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Em Fortaleza 1,8 mil professores recebem gratificação para compensar violência diária dentro e fora de escolas

Professores sofrem assaltos constantes no caminho para escolas, e ameaças de alunos armados dentro delas. O Município garante um extra de R$ 582,91 a quem trabalha em zonas perigosas. O Estado, nem isso

07 de março de 2016 às 08:11 - Atualizado em 07/03/2016 08:19

Professores têm de se arriscar na ida e volta ao trabalho. Os assaltos são constantes (FOTO: Fernanda Moura/Tribuna do Ceará)A marca de bala na parede já revela o cenário em uma escola de Fortaleza. Alunos assistem a aulas armados de revólver, disparam ameaças se expulsos de sala, “tocam o terror” quando são contrariados, seja dentro ou fora da instituição. Até no direito de ir e vir dos outros assegurado na Constituição Federal eles interferem. E, no meio disso tudo, estão os profissionais do ensino. A rotina de professor da rede pública tem sido uma luta constante contra o medo e a vontade de desistir da profissão.

“Já fui assaltada oito vezes no caminho para a escola”, desabafa a professora de História de uma escola municipal de Fortaleza, que pede para não ser identificada. O caminho até a instituição, localizada na Grande Messejana, é inseguro tanto para quem faz o percurso de carro como de ônibus.

A segunda opção é ainda pior, já que a parada dos coletivos fica distante da escola. Há quatro anos, ela segue diariamente para o trabalho, onde atua das 7h às 17h. Os quatro quarteirões que precisa andar são os que mais dão medo. “Os bandidos se reúnem nas praças, bem em frente ao colégio, e esperam a gente sair para nos assaltar. Já mataram várias pessoas ali, inclusive um aluno que era da escola”. O caso, ocorrido há cerca de um ano, gerou comoção, mas a professora optou por não comentar detalhes do assunto. “Foi em um final de semana, a gente chegou na segunda-feira e disseram. Foi assassinado na frente da própria escola onde estudava”, lamenta.

Para passar por situações de risco, trabalhando em regiões com alta criminalidade, os professores municipais recebem uma bonificação chamada “Gratificação de Incentivo à Lotação”, instituída em 2014. O valor de R$ 582,91 por mês representa 26,9% do piso salarial (R$ 2.163,73) de um educador de 40 horas. Ao todo, 1.828 professores de 72 instituições dispostas em 29 bairros de Fortaleza estão incluídos na lista. O Conjunto Palmeiras possui o maior número de escolas beneficiadas: 10.

De acordo com a Secretaria Municipal de Educação (SME), o benefício foi implementado após pacto consensual entre a Secretaria e o Sindicato da categoria e tem o objetivo de incentivar os profissionais a exercerem as atividades nas escolas com difícil acesso. “Não é suficiente. Além de ter sido assaltada, já presenciei muitas ocorrências. Algumas vezes, deu tempo de correr para dentro da escola, outras não. E o pior: os alunos também passam por isso. Mas é o jeito”, conta. Nas oito vezes em que foi assaltada, ela teve celulares, bolsas e dinheiro levados. “Os bandidos sabem que trabalhamos ali, não tem nem como fazermos nada, porque no dia seguinte vamos ter que voltar para a escola”.

Ameaças

O mesmo acontece com a professora municipal de História, Geografia e Ensino Religioso, no Bairro Dias Macedo, que também prefere manter o nome em sigilo. Brigas, desrespeito e vandalismo não se aprendem na escola, mas é realidade dentro das próprias instituições. Ela trabalha dois turnos completos (tarde e noite) diariamente e diz já ter sido ameaçada por estudantes, que intimidam funcionários de todos os escalões.

Dentro de sala de aula, o confronto explode quando o aprendiz é contrariado. “Um aluno do 6º ano quis me dar um murro no rosto. Outra vez, um se armou com a faca do refeitório e quis ferir a coordenadora. Teve outro caso em que eu estava dando aula, quando – de repente – a gangue do Lagamar pulou o muro e saiu de sala em sala atrás de um inimigo”.

E histórias não faltam. Ex-presidiários, traficantes e assaltantes são alunos da professora de 47 anos. Nas mochilas, revólveres, facas e estiletes dividem espaço com os livros. “Tem para todo gosto”, diz. As constantes ameaças e humilhações pelas quais passa, no entanto, não fazem com que a pedagoga tenha receio de dar notas baixas, se for preciso. Até porque, segundo disse, em geral, eles não se importam com o desempenho no colégio. “Os que atuam nesse submundo frequentam a escola apenas por imposição dos pais ou por não terem o que fazer, pois suas casas não oferecem as mínimas condições para acolhê-los durante o dia, ou até por seus parceiros estarem lá, para ‘tocarem o terror’ o dia inteiro”.

“Um aluno do 6º ano quis me dar um murro no rosto. Outra vez, um se armou com a faca do refeitório e quis ferir a coordenadora” (Professora municipal)

Mesmo tendo passado por diversas situações de risco, a educadora não recebe a Gratificação de Incentivo à Lotação. É que a escola onde atua não está incluída na lista da SME das instituições com locais de difícil acesso. De acordo com ela, problemas psicológicos são recorrentes na categoria. No fim de 2014, foi diagnosticada com Síndrome do Pânico e teve de passar por tratamento, mas ainda restam sequelas. “Me sinto desprotegida, abandonada, manipulada, desvalorizada. Todo dia penso em desistir da profissão”, desabafa.

Sem gratificação

Uma professora de Língua Portuguesa, cujo nome também não será revelado, de uma escola estadual do Bairro Pirambu, sofreu uma tentativa de assalto que seria cometido por um aluno seu. Ao perceber que a vítima seria ela, o estudante voltou atrás e desistiu de praticar o crime.

“Eu estava na parada de ônibus sozinha, quando percebi que dois homens vinham de bicicleta na minha direção. Na medida em que se aproximavam, meu nervosismo aumentava. Reduziram a velocidade, um deles saltou em direção a mim e já ia puxar algo da cintura, quando o que ficou na bicicleta o chamou, fazendo com que desistisse da empreitada. Ele me reconheceu e eu o reconheci: havia sido meu aluno”, relata aliviada.

Em outro caso, também presenciou um estudante perguntar a um professor se ele tinha ‘peito de aço’, em um tom claro de ameaça, depois de ser retirado de sala por mal comportamento. Apesar de tentar manter um bom nível de relacionamento com os alunos, a profissional já teve o carro arranhado e os pneus furados. Outra vez, soube que um estudante foi praticar assaltos após a aula e acabou preso. “Infelizmente, boa parte dos colegas tem alguma história de provocação, humilhação ou intimidação para contar”.

Para completar o drama, os professores da rede estadual do Ceará não recebem a gratificação, até então exclusiva para os professores municipais. Eles se arriscam nas escolas e não são beneficiados com nenhum tipo de remuneração. Segundo a Secretaria de Educação do Ceará (Seduc), não há previsão legal para o recebimento do benefício. “Hoje, nós, professores temos que lidar com a violência dentro e fora da escola, não há lugar seguro. Entrego todos os dias minha vida nas mãos de Deus; porque, se até para a polícia a situação está difícil, imagine para o cidadão comum”.

O magistério sempre foi um sonho para ela, mas o desejo perdeu força em detrimento ao cansaço de lidar com agressões e humilhações diárias. Não existe formação que prepare um profissional para isso. “A constante desvalorização pela qual passamos, os baixos salários, agravados por essa sensação de insegurança e impotência, têm me feito pensar em seguir outra profissão”.

Marca de bala é escondida com cartaz na escola no Conjunto Palmeiras (FOTO: Fernanda Moura/Tribuna do Ceará)
Marca de bala é escondida com cartaz na escola no Conjunto Palmeiras (FOTO: Fernanda Moura/Tribuna do Ceará)


Tiros e ataques

O ataque de criminosos a caminho do colégio é rotineiro e assombra toda a comunidade escolar. A violência parece massacrar os funcionários, gerando cicatrizes em todo o sistema… E até nas paredes dos colégios. A reportagem do Tribuna do Ceará visitou duas escolas municipais localizadas no Conjunto Palmeiras, listadas pela Secretaria Municipal de Educação como locais de difícil acesso. Uma delas ainda tinha resquícios de uma invasão ocorrida em 2013. Marcas de bala na parede permanecem como lembrança de algo que os professores insistem em esquecer.

“Na gestão passada, houve invasão e saqueamento no colégio. Todo final de semana, ela era saqueada. Aqui temos até um buraco de bala na parede”, conta uma mestre, que pede para não identificar nem informar o nome da instituição. Na época, ladrões pularam o muro da escola, renderam o único vigilante que estava no local, quebraram cadeiras, reviraram salas e levaram o celular do funcionário e câmeras de segurança.

“Me sinto desprotegida, abandonada, manipulada, desvalorizada. Todo dia penso em desistir da profissão”. (Professora municipal)

Para os 630 alunos, apenas um vigia faz a segurança por turno, tendo de acumular ainda a função de porteiro. “De vez em quando passam agentes da Guarda Municipal ou do Ronda do Quarteirão. Mas é bem de vez em quando mesmo”, relata.

Diante do cenário, o então diretor da escola saiu do cargo, e houve chamada pública para outra gestão. “Já teve tiroteio na rua de trás da escola, por causa da disputa do tráfico de drogas. Os professores que estavam saindo, voltaram correndo para cá. Ah, e muitos já foram assaltados”, acrescenta. Na escola, que recebe alunos do Infantil ao 5º ano do Ensino Fundamental, um deles – de apenas 9 anos – foi flagrado com uma arma branca, uma faca. Muitas das vezes, os próprios colegas informam à coordenação. “Eles avisam baixinho, e aí chamamos o aluno para não constranger na frente dos outros, vemos a mochila e retiramos a arma. Também chamamos os pais para conversar”.


Tribuna do Ceará