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Um século depois, o drama da seca retratado no livro ‘O Quinze’ se repete

29 de dezembro de 2015 às 11:36

O Jornal Nacional da rede Globo refez o trajeto do personagem Chico Bento, do livro de Rachel de Queiroz, para mostrar a região que sofre com a seca no Ceará.

O Jornal Nacional começou a apresentar ontem (28) uma série de três reportagens sobre um dos assuntos que dominaram as conversas e as preocupações dos brasileiros ao longo deste ano: a seca.

As paredes de uma casa guardam uma história que começou a ser imaginada há exatos 100 anos.

Foi o barulho do sertão que alimentou a imaginação de uma menina chamada Rachel. Ela tinha cinco anos de idade e o Ceará passava por uma das piores secas da sua história.

Tão trágica que 1915 passou a ser conhecido apenas por O Quinze. E naquela época a menina tinha dois olhos, um coração e janelas. Com o que viu, anos depois ela escreveu uma ficção muito próxima da realidade.

Um dos personagens era um homem chamado Chico Bento. Sem chances de sobreviver ali, ele pega uma mula, a família e resolve retirar-se. Uma viagem de 200 quilômetros a pé, de Quixadá até Fortaleza.

A saga do retirante e o livro “O Quinze” são hoje um patrimônio. E foram imaginados dentro de uma casa.

Cem anos depois, que segredos ainda existem nesse caminho? A partir de agora, a reportagem pisa nas pegadas de um personagem imaginário numa busca pela salvação, o maior impulso de vida.

Nada foi combinado, tudo acontece ao acaso. Quanto de 1915 ainda existe em 2015? Para responder essas perguntas começa agora O Quinze: Travessia.

Rachel de Queiroz descreveu o início do caminho assim:

"O chão, que em outro tempo a sombra cobria, era uma confusão desolada de galhos secos, cuja agressividade se acentuava ainda mais pelos espinhos."

Hoje, a paisagem só muda quando se encontra um descampado que num próximo olhar se revela uma lagoa gigante sem gota d'água.

Por causa dela, acontece o primeiro encontro da reportagem.

“Tem hora que a gente num sabe mais o que faz da vida. Por que a gente é pai de família e você sabe, né? A gente sendo pai de família que cada dia que se passa a gente tem que arrumar o pão dos filhos, né? Se não arrumar aí o negócio fica feio”, conta o agricultor Idelfonso Cavalcanti.

Último recurso: Idelfonso põe abaixo a caatinga seca para plantar quando chover. Mas quem disse que chove?

“Essa lagoa no ano passado não pegou uma gota d’água. Não tem melhora aqui não. A melhora é essa aqui. A gente de sol a sol pelejando pra sobreviver e vê se a gente apronta um pedaço de chão pra poder no próximo ano Deus mandar um bom inverno e a gente tá aqui dentro né”, diz o agricultor.

O suor é só esperança, quem sabe ano que vem.

“Tem o sol quente, tem a lapada do cipó desce na cara o dia todinho que você vai levando, de vez em quando, vem uma lapada de um cipó desse. Muita gente que a coragem é pouca demais se aborrece, vai embora. E não enfrenta um negócio desse. A gente enfrenta porque graças a Deus a gente nasce com uma ponta de coragem porque, se não for, não enfrenta não”, desabafa Idelfonso Cavalcanti.

Se anda pouco hoje para encontrar o asfalto. Sendo assim tão fácil, por que resistir e ficar?

“Tô com 65 anos. Foi a pior seca que passei na minha vida. Foi Deus que mandou mesmo pra pessoa saber quem tem coragem de trabalhar”, diz Francisco.

JN: Por que?

Francisco: Só trabalha quem tem coragem, patrão.

Todos os dias Francisco leva e traz água para o gado, que não sobreviveria de outro jeito.

“Na idade que eu tô não é todo mundo que se atreve a trabalhar não. Eu trabalho porque acho bom. Meus filhos brigam comigo, mas eu acho bom trabalhar”, afirma Francisco.

Ela não sabe quantos anos tem, quantas secas já passou.

Para Izabel também tem asfalto, mas é como se ele não tivesse ali. ”Deus não mandou chuva pra gente”, lamenta a agricultora Maria Izabel Barbosa.

O açude de onde ela pegava água secou. Tudo em volta secou.

A batalha diária é para saber de onde vai tirar a água para beber. Arroz e feijão todo dia, só por causa da aposentadoria rural, porque a terra do quintal virou poeira.

“Não foi ainda este ano que a gente plantou e não deu nada. A pessoa quando tem raiva não sobe o sangue na cabeça? Pois é, é isso”, diz a agricultora.

Ficar e lidar com a terra vira uma batalha.

“Isso aqui no ano passado, num tempo desse, era tudo verdinho, tudo verdinho. Este ano por causa da seca que é grande, tá tudo seco e sem nada. Não tem nada. Nessas áreas de chão não tem nada. Tudo se acabando sem nada, mas tudo mesmo se acabando sem nada. Ninguém vê nada”, conta o agricultor Francisco José de Deus.

Francisco roçou, cavou, semeou, cuidou, mas na hora de colher: nada. “A coisa mais difícil que eu já vi na vida? Vou já lhe falar, sério. Foi essa seca que nós estamos nela. Nunca na minha vida eu vi passagem ruim como tem essa”, lembra Francisco.

Parece difícil imaginar o que faz o Francisco continuar e ficar. Numa paisagem como a que impressionou Rachel de Queiroz há 100 anos. Ela disse:

"As pobres árvores apareciam lamentáveis, mostrando os cotos dos galhos como membros amputados e a casca toda raspada em grandes zonas brancas."

Quem não pega a estrada ainda luta com a terra. É um ato de resistência. Só quem é forte e tem coragem consegue ficar.

“Viver é muito bom, rapaz. Viver é muito bom, é? É bom demais. Não tem coisa melhor no mundo do que o cabra viver. Viver é muito bom”, afirmou Francisco.